quarta-feira, 8 de junho de 2011

O CONCEITO PEDAGÓGICO DE RAIVA EM PAULO FREIRE: LINHAS PRELIMINARES PARAUMA TEORIA DA PRÁXIS DEMOCRÁTICO-LIBERTADORA


A concepção humanista-realista de Paulo Freire no campo educacional é demasiadamente humana. O conceito pedagógico da palavra raiva aplicado por Freire para demonstrar suas angústias, seus sonhos e utopias e decepções com a realidade educacional, trás consigo a insígnia do amor, da solidariedade, da paixão, da cordialidade radical. Em Freire o sentido macro da palavra em voga (raiva), dá a ideia de indignação e nojo ante a condição do individuo no contexto em que se relaciona social, econômica, cultural e, sobremaneira, educacionalmente. E é, exatamente, aí, o ponto nevrálgico de toda sua pedagogia pensada na tentativa de inverter a lógica dessa insensível realidade em que subsiste e sobrevive o sujeito histórico destituído de sua condição elementar: a dignidade. O analfabetismo para Freire é uma agressão estúpida produzida pela classe dominante para dominar os ‘esfarrapados do mundo’. Mas, a sua determinação e sua coragem explodem num fascinante mundo da perspectiva educacional histórico-humanista-ético-libertadora, a sua mais bela criação.
Em Freire a raiva ganha sentido de força e uma dimensão com expressividade, sem perder nunca a ternura e a paixão porque ele trabalha com a ideologia explicita da inquietante busca pela verdade e pela ética transformadora do sujeito histórico no e para o mundo. Não é tarefa fácil desmistificar o sentido dessa terminologia e cuja finalidade é atingir milhões de jovens e adultos destituídos do direito a uma educação digna e libertadora. A condição moral, social, econômica e educacional de dezenas e centenas de milhares e milhões de jovens e adultos não-alfabetizados que se tornaram o epicentro do pensamento freireano, condensa a imperiosa inflexão de instituir uma proposta moderna e progressista objetivando a renovação interior do homem escravizado por uma ideologia cruel e excludente.
Ao inserir o conceito pedagógico de raiva em seu discurso pedagógico, Freire, na verdade, tenta provocar uma discussão que coloque no centro o homem em sua totalidade como um ente que merece respeito em todas as dimensões imagináveis, independentemente, de sua condição cultural (letrado ou não), considerando que tal homem (sujeito histórico) possui uma história particular, existencial e, por isso mesmo, não pode ser posto como ‘incapaz’ e ‘inútil’ sob o ponto de vista da educação formal ou, mesmo numa dada sociedade. É neste sentido que Freire se sente ferido e, por isso mesmo, solta sua voz com o sentimento de raiva-indignação. Na fala de Freire o conceito pedagógico de raiva adquire uma perspectiva inovadora porque liberta; expressa felicidade porque ilumina o sujeito; gera expectativa porque possibilita uma nova vida e, por fim, remodela o intelecto, refaz o pensamento do sujeito sobre o mundo e estabelece a recriação de um novo homem. Freire é a própria identidade da raiva crítica e radical da indignação perante a condição humana-desumanizada pelo sistema capitalista expondo ao ridículo o sujeito não-alfabetizado naturalizando tal condição, o que, de fato, cria a separação social entre os desiguais, ou seja, entre os culturalmente abastados e formados e os desculturalizados e informalmente excluídos do sistema oficial de ensino e tal conjuntura expõe a negação de um elementar direito de cidadania.
Nesse processo em que Freire usa e abusa do pedagógico de raiva para deixar suas impressões a respeito da trágica realidade socioeducacional, ele não se contém de tanta esperança no futuro melhor para aquele/aquela que não tiveram oportunidade para se alfabetizarem na idade própria e, que, certamente, pressentirão a presença da beleza e da boniteza de ser gente quando perceberem em-si e, para-si, a importância da alfabetização. Aliás, Freire é apaixonado pelas gentes que ainda não se reconhecem como tal na condição de não-alfabetizados. A intensa paixão pedagógica de Freire transfere a multiplicidade do ‘ser mais’ e o ‘ser mais’ é ser o ser concreto interferindo no ciclo social rompendo os grilhões impostos pelos opressores de que a realidade social, econômica, educacional, cultural é impossível mudar, pois, ‘ela é assim’, e ‘assim deve permanecer’ e, no entanto, Freire, discorda visceralmente, desse discurso mecanicista-fatalista-positivista dominante. Para Freire não importa onde se encontram os desamparados, os esfarrapados, os desassistidos, os abandonados e os ‘sem nada’; ele quer sim, reafirmar a condição fundamental do indivíduo de reconquistar a perspectiva do possível e de forma irresistível, caminhar em direção à liberdade através do conhecimento apropriado concreta e materialmente revelado no processo de alfabetização. Essa é na verdade, a grande ousadia da filosofia freireana visando à transformação completa do alfabetizando.
Para Freire a definição pedagógica de raiva implica a mudança de postura do educando diante da realidade apropriando-se da generosa abertura da ciência que não é de uso exclusivo dos representantes da classe dominante e, assim, percebendo-se que são seres humanos, são gentes que vivem no mundo e que merecem respeito independentemente de sua condição socioeconômica, étnica, religiosa e, principalmente, educacional. Pois Freire não concebe a ideia da negação, pois, é impossível a convivência social saudável entre seres onde a dimensão fundamental da relação estabelecida deixa de existir para uma grande maioria e, passa a garantir privilégios para uma minoria abastada que desfruta de tudo e com gozo! Em Freire essa idéia é antagônica e inaceitável! Ele quer harmonia para todos, sincronia entre os desiguais para tornarem-se iguais não somente no papel, mas, essencialmente, na realidade concreta.
Por tudo que representou e representa de bom, de belo, de bonito, de espírito elevado, de esforço coletivo em defesa das maiorias oprimidas, contra a negação do direito, pela destituição e falência da ‘licenciosidade’ e pelo entendimento da riqueza dialética presente em cada sujeito histórico fazedor de História predomine a força intensa e a alma bondosa daquele que sem nenhuma ambição pessoal simbolizou e simboliza uma coletividade latino-americana e mundial na perspectiva da mudança e da transformação revolucionária de cada homem e de cada mulher pela educação libertária.
A única evidencia expressa por Freire em toda sua Pedagogia libertadora é a possibilidade de reconstruir e refazer a cultura e a história do sujeito alienado. Ele quer, no fundo, é transformar intelectualmente o sujeito histórico. E é nesta perspectiva que desejo provocar de forma dialética em cada ser, em cada educador, a necessidade de refletir a condição indescritível de operário do saber-fazer-e-fazer-saber na construção da identidade do sujeito não-alfabetizado.
Freire é assim: desafiador, profundo, apaixonado, inquietante, bonito, belo, resgatador de esperanças e almas, pedagógico e encantador. Quem conhece sua filosofia, não pode reagir com naturalidade e comiseração ante a realidade por ele criticada – impossível ficarmos impassíveis diante de sua grandeza pedagógica e riqueza intelectual - pois, em nada contribuiria para a mudança radical do processo de alfabetização dos não-alfabetizados.

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